quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

estilhaços, vinhos e tapetes indianos

Quebre os copos. Eles são de cristal e foram herança de família: meu avô os recebeu de presente do meu bisavô no dia de seu casamento. Eu não me importo. Espatife-os, jogue cada um contra a parede, cada caco vai nos lembrar que um dia fomos inteiros - não um, mas inteiros, um pro outro.
Faça ainda melhor. Pegue os vinhos, das melhores safras, você bem sabe onde eles estão guardados. Garrafa por garrafa no chão. Deixa o líquido vermelho escorrer, molhar o tapete indiano, você não estará derramando sangue de ninguém. Só deixando o seu ódio escorrer sobre a tapeçaria que nós compramos na lua-de-mel, você lembra?
Era quando "eu e você" ainda significava alguma coisa. Você ficava irritada com o serviço de quarto, eu imitava o mordomo e você ria ria me afagava os cabelos e me beijava a têmpora assim com um cuidado tão bonito que me comovia. Mas isso passou.
Hoje você não tem mais nada a me oferecer exceto cacos de vidro pela sala que levamos meses pra decorar. E não quer nada de mim além do meu cartão de crédito. É uma pena, eu ainda imito o mordomo tão bem. Gaste meu dinheiro. Gaste.
Só não gaste meu tempo, logo você que me ensinou que ele vale mais do qualquer coisa. Mais do que esses cristais, esse vinho, esse tapete indiano ou todas essas pinturas caras que você me pediu pra pendurar pelo corredor. Mais do que essa adaga de ouro que corta o seu pescoço.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

meu presente silencioso

Não era reconciliação, não era um pedido desesperado, volta-pra-mim-olha-eu-aqui (embora eu deva confessar que não acharia isso ruim). Era apenas uma lembrança, talvez um eu-ainda-penso-em-você. Foi na covardia que eu arranquei aquela flor entre as brechas do asfalto. Mas ela parecia tão solitária. Ela parecia comigo, acho. Por isso a deixei na sua mesa enquanto você foi religiosamente tomar o seu café das nove e quinze. Eu esperava um sorriso, um aceno talvez. Só não esperava seu olhar, voltando-se pra ele assim que viu a flor. Espero que ela murche logo. Adeus.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

o móbile

Vai cedo, meu amor. Vai cedo. Porque você foi sem escutar tudo que eu tinha que te dizer e sem dizer tudo que eu tinha que escutar. Mesmo sem querer. Aqui você deixou meio maço (que eu não vou fumar), um pacote de balas inacabado (que eu não vou comer) e essas palavras (que eu não vou ouvir). Ah, essas palavras... Pairam sobre mim como um móbile.
Eu tinha um móbile, sabe, quando eu era criança. Mas eu nunca consegui alcançá-lo do meu berço. Então me mudaram pra uma cama e mamãe o subiu ainda mais, até que um dia ele simplesmente não estava mais lá. Acho que foi porque cresci demais. Daí que eu acho que passei toda a minha vida atrás de coisas que nunca pude alcançar.
Eu sempre vivi com esse sentimento de perda. Não era só pelo móbile. Mamãe também fez isso com meus brinquedos e minhas roupas. Sobrevivi, cresci, esqueci os brinquedos e passei a comprar minhas próprias roupas. Mas nunca me esqueci, entende? Todo mundo tem seu trauma de infância e faz dele o que quiser. Eu só queria alcançar a porra do móbile.
Achei que já era hora de encarar meus fantasmas – não estou falando da carta que deixei a pouco na sua casa falando de tudo que a gente tinha e do nada que vamos ter. Pois bem, fui à casa de minha mãe e achei bem no fundo do armário aquela peça colorida. Pendurei, peguei. Tudo espatifou-se no chão. Juntei os cacos de uma varrida só e do lixo contemplei seus restos. Agora eu pairava leve leve sobre eles.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Vó, quando a senhora se foi, eu tinha 16 anos e nunca havia visto a morte de perto. Me lembro que foi no dia 21 de abril, quando Tiradentes havia sido enforcado. Bom, nesse dia enforcaram minha inocência também.
Acho a morte cruel, porque ela deixa vestígios. Cada peça de roupa que a senhora deixou no guarda-roupa parecia gritar "ei! ela esteve aqui!". E a ausência daqueles pezinhos se movimentando pelo quintal? A ausência também grita, e às vezes mais até que a presença.
Penso na senhora, encolhida e frágil até seu último momento. E forte por dentro. Forte nas convicções que tinha, embora eu deva dizer que nunca concordei com a maioria delas. Mas tento entender. Tento entender sim, porque a senhora foi criada tão diferente de mim e não era tão culpa sua assim. Pensávamos diferente em muitos aspectos, mas esse parece ser o mal da nossa família.
Quase sorrio quando penso na senhora aí no céu, contemplando e se afligindo com nossas confusões diárias. Me pergunto até se aí existe páscoa - ambas sabemos que a senhora jamais seria a mesma se não guardasse seu ovo de chocolate gigantesco em cima da geladeira até o ano seguinte, quando o ovo era substituído por outro.
Quase sorrio, mas não o faço por ter uma consciência. Porque sei que a senhora não aprova muito do que ando fazendo. Porque a gente sempre pensou tão diferente. Desculpa, vó, se as coisas não saíram do jeito que a senhora planejou. Mas quer saber? Também não saíram do jeito que eu planejei.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

vinte e oito

O sorriso da lua estava irônico. Cada vez maior e mais irônico. Sobre o balcão da cozinha, o pequeno pote de dinheiro ainda estava pela metade. Na sala, o vento entrava pela janela fazendo o tapete quase voar. Num quartinho qualquer, a máquina de costurar rugia, devolvendo utilidade aos uniformes de trabalho e de escola. Era o trabalho da mãe: consertar os furos, tapar buracos, evitar que tudo se rompesse.
O pai chega pontualmente às 19h. Traz o jornal do dia e o arrependimento de uma vida. Sentam-se para comer, o silêncio pontua cada frase que é dita. A mãe lê o resumo da novela, o pai comenta com o filho o resultado do jogo de futebol – tudo como deve ser. Sobre a mesa, há pão. Sob a mesa, ressentimentos. A faca cai, pai e mãe correm para pegá-la. Ele insiste em pegar, ela diz que está tudo bem. Está tudo bem.
A lua está cheia. O filho diz que convidou um amigo para passar a noite. A mãe prepara um colchão ao lado da cama dele, que permanecerá intocado por toda a madrugada. Eles fecham a porta, o som do videogame é alto. Atenciosa, a matriarca da família prepara um lanche. Abre a porta com cuidado e descobre que sim, há espaço para toques naquela casa. Está curiosamente em paz.
Nos outros dias, a máquina de costura trabalhava cada vez a mais. Havia pressa. Ela cobria qualquer furo que pudesse encontrar. O fogão estava lotado de panelas, a mãe retirava alimentos do forno continuamente e enchia o freezer e a geladeira. Já não ressentia a separação de corpos que acontecia toda noite – ela já não precisava daquele homem dentro de si para se sentir inteira.
Diminuía, a lua. Mas não havia ironia em seu sorriso. Nos dias seguintes, ela limpou a conta conjunta no banco. Deixou as roupas do marido e do filho perfeitamente dobradas na cama de cada um. A geladeira estava abastecida para pelo menos uma semana. Agora era hora de consertar seus próprios rasgos. O pote de dinheiro estava vazio, o tapete voou, a lua renovou-se.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

os prantos, as preces e os pregos

Click. Click. Click. Merda, pensei, o isqueiro pifou. De qualquer maneira, não era tão ruim assim, visto que eu estava quase no meu destino. Cruzo o portão, ando lentamente pelos degraus e estou dentro da igreja. Nada de novo – os mesmos bancos sempre dispostos da mesma maneira, a mesma folhinha pregada na parede incentivando o dízimo. Tenho a impressão de que todas as igrejas são iguais.
Cinco da tarde, poucas pessoas sentadas ouvindo a música sacra que vem do altar. Tudo na medida para comover. Mas não estou aqui pela emoção. Então vou para a sala à minha direita, onde imediatamente me deparo com estátuas de santos e seus olhares agonizantes. Aqui e ali, flechas e pregos enfiados nas carnes de gesso. Lágrimas e olhares que pedem compaixão.
Na parede ao lado, algo prende minha atenção. É como uma mesa, mas seu topo é uma grande bacia rasa e retangular. Ali queimam inúmeras velas, nadando na cera derretida. Imagino que cada vela represente uma prece dita em silêncio. Muitos pedindo, poucos agradecendo, todos acreditando. Cada vela ali representa uma história, uma vida, ou várias vidas.
Começo a imaginar o que ronda aquele lugar: doenças, divórcios, desavenças. Descrenças. As chamas são símbolos de pesos que as pessoas não conseguiram suportar. Contemplando tudo aquilo, me lembro de Bruegel, “Provérbios Flamengos”. Aquela mesa suporta a fragilidade humana. Mas acho que de problemas bastam os meus. Uso a vela mais próxima para acender meu cigarro e saio à rua – me sentindo um pouco mesa, um pouco vela.

domingo, 9 de agosto de 2009

(de) cadente

Confesso que me arrependo de pouca coisa, e mais do que isso: procuro não me arrepender. Caso o fizesse, perderia noites de sono inteiras, que já não andam tão inteiras por conta de uns pequenos pensamentos irrequietos. Eufemismo. Corrigindo, devo dizer que esses pensamentos tem dançado em minha mente como putas de cabaré.
E então adicionei algo à minha miserável conta de remorsos. Noite sem nuvens, me deitei num deck qualquer construído sobre um lago qualquer. Estava ali falando sobre um par de olhos castanhos qualquer, quando passa uma estrela cadente. Não posso deixar de mencioná-la.
- Fez um pedido? - me pergunta Cristina, que sempre escuta minhas ideias loucas com paciência de quem espera Jó se decidir sobre algo (acho que ainda terei uma estátua dela no meu quarto).
- Fiz.
E em menos de 5 minutos, aqueles olhos castanhos de que falava dão sinal de vida, ao que praguejo por não ter deixado meu celular no modo silencioso. E aquela voz me deixando nervosa. Quero jogar meu celular no lago quero me jogar no lago quero me jogar com aqueles olhos no lago.
Deito-me olhando para as estrelas de novo e me arrependo do pedido que fiz. Veja só, eu queria apenas que tudo acontecesse outra vez. Só uma - nem fui gananciosa. Perdi a chance, naquele milésimo de segundo que caía a estrela, de desejar não desejar mais. E no outro dia voltei, e deitada no mesmo deck fiquei esperando outra estrela passar. Não passou. E eu fiquei desejando, ainda mais.